Sinopse
Passam, em 2021, oitenta anos sobre a primeira edição de Esteiros, de 1941 - um livro que marcou várias gerações de leitores ao mostrar-lhes personagens que ficaram para sempre na nossa recordação, «os filhos dos homens que nunca foram meninos» (é essa a dedicatória a abrir o romance): Gaitinhas, Guedelhas, Gineto, Maquineta e Sagui. São eles os heróis anónimos de um diálogo entre o humano e a Natureza, a denúncia da injustiça e a busca de redenção, a solidariedade e a denúncia da pobreza e da penúria.
O romance, uma das referências mais emblemáticas do movimento neorrealista português, foi de leitura obrigatória nas escolas secundárias portuguesas durante duas décadas. É hoje um livro quase esquecido. No entanto, graças à sua ingenuidade, bravura e simplicidade, Esteiros é um documento marcante da história portuguesa do século XX - e deve ser relido para que não esqueçamos a fotografia amarga desses anos.
Opinião
Este é um livro emblemático da literatura portuguesa, publicado em 1941 e escrito por Soeiro Pereira Gomes, onde é retratada, de forma contundente e realista, a dura realidade dos trabalhadores das esteiras, nas margens do rio Tejo, em Lisboa. O autor, nascido em 1909, teve uma vida marcada pelo activismo político e pela luta em prol dos direitos dos trabalhadores. Soeiro Pereira Gomes utiliza a sua experiência como ex-metalúrgico para dotar o livro duma linguagem crua e visceral, evidenciando as injustiças sociais e as desigualdades presentes nessa comunidade. De maneira vívida e intensa, o autor retrata a vida difícil das personagens principais, crianças que não podem ser meninos, destacando a exploração e a pobreza a que estão submetidos. Esteiros apresenta-se como um retrato fiel e eloquente não só dos trabalhadores das esteiras, mas também de todo um contexto social e político da época, estabelecendo-se como uma das maiores contribuições literárias sobre a temática do proletariado em Portugal.
Assim, apresenta uma contextualização histórica e temática da época em que é situado, o período do Estado Novo, como um retrato expressivo de todas as misérias existentes e pouco valorizadas por quem mandava no país. O foco é dado à pobreza extrema, à miséria e à falta de oportunidades enfrentadas pela população em geral, mas com mais destaque para estes meninos que nos chocam por, claramente, não lhes ter sido dada a oportunidade de ter uma infância como seria o seu direito. Com uma linguagem realista e crítica, o autor fez com que Esteiros seja uma obra de denúncia e reflexão sobre questões sociais e políticas. Tudo acontece em torno dum lugar pouco desenvolvido, onde ainda existem esteiros, zonas de extração de argila onde são construídas as telhas, durante a década de 1930. Apesar de existir uma Fábrica, não existe trabalho para todos, nem a vida desses trabalhadores é menos miserável que a dos restantes.
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Os personagens principais são todos crianças que precisam sobreviver, fugir da miséria, procurar pelo seu sustento para si mesmos ou para ajudar a família, sendo que, para isso, precisam de cedo perder a inocência e ingenuidade próprias dessas idades precoces. Através destes rapazes e da sua jornada, ficamos a conhecer a sua rotina marcada pela brutalidade do trabalho árduo nos esteiros, pela pobreza, pela miséria ao seu redor e pelas relações de camaradagem e solidariedade que são criadas entre estes meninos, bem como as suas aspirações e sonhos, na maioria das vezes frustrados pelo sistema opressivo vigente. Com personalidades muito distintas, cada um com a sua história pessoal de pobreza, de solidão e de abandono, a amizade é o que os une e lhes dá esperança para viver o dia seguinte e que lhes permite ser um pouco criança, partilhando brincadeiras e conspirando golpes, nem sempre dentro da lei e da moral.
"Os pobres tiram o pão da boca para os filhos dos pobres. E os ricos sacodem as migalhas, em nome de Deus."
Com um estilo literário marcado pela objectividade e pelo realismo, Soeiro Pereira Gomes procura retratar fielmente a dura vida destes meninos que cresceram sem viver a infância, que perderam quem os podia proteger ou que, ainda os tendo, não lhes conseguem proporcionar essa protecção, porque precisam de trabalhar e da ajuda do pouco que estes jovens possam conseguir. Através das suas descrições detalhadas, mas não aborrecidas, o autor consegue transportar o leitor para dentro deste universo cruel, retratando com assustadora precisão as condições precárias de vida e trabalho dos esteiros. A verdade é que a temática abordada no livro Esteiros permanece relevante nos dias de hoje ao retratar de forma contundente as desigualdades sociais e as condições de vida precárias vivenciadas pelos trabalhadores nas margens do rio Tejo.
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A obra traz à tona questões como a exploração dos operários, a falta de acesso à educação e à cultura, a falta de moradia digna e luta dos trabalhadores pela melhoria das suas condições de vida. Estas problemáticas, ainda que com outros contornos e aliadas a outros tantos problemas mais modernos, ainda estão presentes na sociedade contemporânea, tanto em Portugal como em outros lugares do mundo. Com esta leitura é possível ampliar o debate sobre a necessidade de garantir direitos básicos aos menos favorecidos e promover uma sociedade mais justa e igualitária. No fundo, é um convite para uma reflexão sobre os desafios que ainda enfrentamos na construção de uma sociedade mais digna e com oportunidades para todos.
"Senhores das ruas, abandonaram-nas no ímpeto das águas e do vento, vencidos em luta desigual. E lá se foi o mundo imaginário em que brincavam."
Pessoalmente, só tomei consciência da existência deste livro depois de ter lido o Guia para 50 Personagens da Ficção Portuguesa, onde fiquei com muita vontade de ler todas as obras que ainda não conhecia. Assim, como um projecto de leitura que pretendo testar, comecei por este livro tão peculiar da nossa literatura, para o qual deixo um convite para que aceites embarcar nesta jornada emocionante e que promete tocar em todos os leitores sensíveis. Através das páginas de Esteiros, obra magistral de Soeiro Pereira Gomes, prepara-te para te envolveres com personagens fortes, mergulhar nas suas dores e aspirações, e testemunhar a sua luta incessante por uma vida melhor. Esta pode ser considerada uma leitura obrigatória para todos os que se interessam por literatura que mistura questões políticas, sociais e humanas de um modo envolvente e impactante.
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Tenho e já li. Este livro é muito bom. Não deixe de ler também Engrenagem, do mesmo autor. E se puder, aconselho Gaibéus, de Alves Redol. Gosto imenso desta literatura.
ResponderEliminarO Gaibéus já tenho debaixo de olho também e conto ler nos tempos mais próximos. O Engrenagem não conhecia, mas vou procurar! Obrigada pelas recomendações!
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