Sinopse
Autora de romances e contos que figuram entre os mais emblemáticos da literatura brasileira, Clarice Lispector é considerada uma das mais importantes escritoras do século XX. A sua popularidade alcançou níveis surpreendentes nas últimas décadas, especialmente após o fenómeno da internet, mas a sua figura e a sua obra seguem exercendo sobre leitores o mesmo e fascinante estranhamento que causaram desde a sua estreia literária, em 1943. Nesta coletânea, que reúne pela primeira vez todos os contos da autora num único volume, organizado pelo biógrafo Benjamin Moser, é possível conhecer Clarice por inteiro, desde os primeiros escritos, ainda na adolescência, até as últimas linhas.
Opinião
Clarice Lispector, nascida em 1920 na Ucrânia, chegada ao Brasil ainda criança, tornou-se numa das vozes mais influentes da literatura brasileira do século XX. Formada em Direito, Lispector cedo se dedicou à escrita, tendo publicado o seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, em 1943, que imediatamente a colocou como uma autora de destaque. A sua prosa introspectiva e intensa, marcada por uma linguagem única e uma profunda exploração da psicologia humana, revolucionou a narrativa moderna no Brasil. Em Todos os Contos, temos uma obra que reúne a essência multifacetada da escrita da autora, apresentando uma coletânea significativa das suas narrativas breves que exploram a complexidade da experiência humana. Os contos abrangem temas como a identidade, a solidão e o amor, refletindo a habilidade única da autora para capturar emoções e nuances da existência.
Cada história é um convite à reflexão, revelando a profundidade psicológica e a sensibilidade que tornaram Lispector numa das vozes mais icónicas da literatura brasileira. Através de Todos os Contos, somos conduzidos por um universo onde o quotidiano se mistura ao extraordinário, e onde cada palavra é carregada de significado e beleza. Estes contos foram escritos em diferentes períodos da vida da autora, entre as décadas de 1940 e 1970, refletindo a evolução do seu estilo e das suas inquietações existenciais. Muitos destes contos foram publicados inicialmente em revistas e jornais, embora depois tenham sido reaproveitados e, algumas vezes, colocados em livros de contos da autora, depois de serem revistos pela mesma. Esta coletânea, que demorou muito a ser construída e publicada, é organizada de maneira a proporcionar uma imersão profunda na multiplicidade de temas e estilos que permeiam a obra da autora. Os contos estão dispostos de forma cronológica e são mais de oitenta, com uma diversidade notável.
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Ao longo das narrativas, os personagens defrontam-se com as suas próprias existências, muitas vezes em momentos de introspecção e crise. Através de monólogos internos e situações quotidianas, os contos abordam a dualidade entre o eu e o outo, o íntimo e o externo, sugerindo que a verdadeira identidade não é uma construção fixa, mas um processo dinâmico e multifacetado. A solidão e o isolamento também são temas recorrentes na sua obra. Vamos encontrar personagens que vivem um constante combate interno, muitas vezes imersos em mundos próprios, desconectados da realidade que os cerca. A solidão não é aqui apenas uma condição física, mas uma experiência psicológica que revela a fragilizada relação do ser humano consigo mesmo e com o outro. Em muitos contos, a procura por uma conexão genuína transforma-se num labirinto de angústia e incompreensão, onde os personagens parecem escravizados pelas suas próprias emoções e pensamentos.
"Desde pequena tinha visto e sentido a predominância das ideias dos homens sobre a das mulheres. Mamãe antes de casar, segundo tia Emília, era um foguete, uma ruiva tempestuosa, com pensamentos próprios sobre liberdade e igualdade das mulheres. Mas veio papai, muito sério e alto, com pensamentos próprios também, sobre... liberdade e igualdade das mulheres. O mal foi a coincidência de matéria. Houve um choque. E hoje mamãe cose e borda e canta no piano e faz bolinhos aos sábados, tudo pontualmente e com alegria. Tem ideias próprias, ainda, mas se resumem numa: a mulher deve seguir o marido, como a parte acessória segue a essencial."
São ainda explorados aspectos profundos das relações humanas, revelando a complexidade e a fragilidade dos vínculos que unem as pessoas. Ao examinar as subtilezas dos relacionamentos familiares, amorosos e de amizade, a autora convida o leitor refletir sobre a dualidade da proximidade e da distância, mostrando que, muitas vezes, mesmo aqueles que estão mais próximos podem estar irremediavelmente distantes. Incontornável é também a forma profunda e sensível como explora a condição feminina. As personagens femininas são, quase sempre, as protagonistas com os seus dilemas complexos e até confusos. Clarice Lispector coloca a nu as nuances da experiência feminina, abordando questões como o desejo, a maternidade, a sexualidade e a insatisfação, revelando como essas vivências moldam a vida interna das suas protagonistas.
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Clarice apresenta um estilo de escrita singular que mistura crueza e sensibilidade de maneira extraordinária. A sua utilização da linguagem é ao mesmo tempo visceral e poética, criando uma atmosfera onde as emoções são expostas na sua forma mais pura e, por vezes, dolorosa. A autor recorre a uma prosa intimista, repleta de subtilezas, que força o leitor a confrontar as complexidades da condição humana. O contraste entre a dureza da realidade e a delicadeza da percepção cativa-nos e faz com que ler Clarice se torne num vício. Além disso, a combinação de introspecção, fluxo de consciência e simbolismo enriquece a leitura e suscita uma conexão íntima entre o leitor e as inquietações existenciais presentes em cada conto. Comecei a ler Clarice, precisamente, pelos contos, com Laços de Família, e tem sido um caminho de sucesso para começar a mergulhar nesta autora tão peculiar e que aconselho aos que têm receio de iniciar a sua descoberta.
"No fundo sou sozinha. Há verdades que nem a Deus eu contei. E nem a mim mesma. Sou um segredo fechado a sete chaves. Por favor me poupem. Estou tão só."
A verdade é que esta coletânea oferece uma visão multifacetada da obra da autora, desde os primeiros anos até à maturidade. Lispector desafia-nos a mergulhar em universos íntimos e frequentemente desconcertantes, onde o trivial se entrelaça com o sublime. Para mim, foi mais uma experiência de leitura transformadora, quase visceral. Cada conto revela um universo particular, onde personagens complexos enfrentam dilemas, solidões e epifanias que acabam por, inevitavelmente, encontrar paralelo na minha própria vida. Lispector transcende o mero contar de histórias, ela provoca reflexões e inquietações nos seus leitores, com uma obra que não se esgota com apenas uma leitura, sendo inevitável releituras ao longo da vida, que trarão, com certeza, outras reflexões.
Parece-me uma leitura ideal para os que apreciam a literatura que desafia e provoca, que explora temas universais, com a magistral voz duma das maiores escritoras de língua portuguesa. Agora, quero convidar-te a partilhar as tuas impressões sobre Todos os Contos e Clarice Lispector. Já leste os contos da autora? Qual o que mais te marcou? Que aspecto do estilo de Clarice mais te impressiona? Já te aventuraste nos romances? Que outras obras da autora me recomendarias? Conta-me tudo nos comentários abaixo!
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