Sinopse
«A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.»
José Saramago
Opinião
Depois duma leitura de um clássico que me deixou com um travo amargo, nada como retornar a um autor que não desilude, como é o caso de José Saramago. Precisava desse incentivo para não desesperar e arrastar as leituras como por vezes acontece quando temos uma má experiência ou uma excelente que não permite mergulhar noutra história com outras personagens, quando ainda estamos a sentir e a pensar nas anteriores. Assim, decidi pegar já no Saramago de 2023, que escolhi tendo em conta a selecção que tinha feito na publicação comemorativa do Centenário do nosso Nobel.
Caim é um livro com menos de duzentas páginas, que se consegue ler em menos de nada, tanto por ser curto como por ser fascinante esta perspectiva bíblica pelos olhos de um ateu convicto. São as reflexões mais incríveis dos textos bíblicos que tenho lido e esta é mais uma delas, das que todos deviam ler, crentes e não crentes. Para os dogmáticos, será sempre um choque ser postos em frente das incongruências e incoerências do seu deus, mas para quem gosta de pensar nestes temas será uma viagem fascinante.
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O nosso enredo começa precisamente com os pais de Caim, Adão e Eva e as suas aborrecidas vidas no Jardim do Éden. São dados detalhes da sua criação e aprimoramento da sua espécie e é contado o momento em que decidem comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Afinal de contas, quem não gostaria de obter conhecimento? Especialmente, quando pensamos que não havia muito que fazer nesse lugar paradisíaco e pouco desafiador para quem tem todo o tempo do mundo pela frente. As consequências são devastadoras, pois a expulsão de Adão e Eva implica que vão para lugares totalmente diferentes do que conheciam e onde precisam de competências que nenhum desenvolveu no jardim.
"Lúcifer sabia bem o que fazia quando se rebelou contra deus, há quem diga que o fez por inveja e não é certo, o que ele conhecia era a maligna natureza do sujeito."
Esta expulsão também os coloca ao corrente de que existem outros humanos, criados por deus, pelos vistos, com outro molde e com outro propósito aparentemente. Mas é junto deles que devem se juntar e procurar sobreviver, descobrindo o que eles já sabem, aprendendo com eles para encontrar o seu lugar nessa sociedade já existente. É certo que encontram alguma ajuda inesperada de seres celestiais, mas acabam por conseguir estabelecer-se e iniciar uma família próspera, com filhos que vão nascendo saudáveis e capazes.
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É assim que chegam ao nosso mundo Abel e Caim, os dois filhos mais velhos de Adão e Eva. Abel tem um talento inato para a criação de gado e Caim trabalha a terra como ninguém. Tendo em conta que estas são as duas formas de subsistência da época, tudo faria prever que os seus futuros seriam prósperos. Para agradecer e honrar a deus, começam a preparar oferendas que recebem atenções bem diferentes por parte desse deus que tanto querem agradar. E assim, os irmãos que tão amigos e inseparáveis que eram, começam a ter um conflito que os separa e faz com que Caim se sinta injustiçado e invejoso de Abel.
"Ao contrário do que costuma dizer-se, o futuro já está escrito, o que nós não sabemos é ler-lhe a página, disse caim enquanto perguntava a si mesmo aonde teria ido buscar a revolucionária ideia."
O assassinato premeditado do irmão, leva Caim numa espiral inesperada que começa com o encontro em pessoa com deus e num primeiro debate que o faz receber como castigo uma mancha na testa e a sina de deambular pelo mundo, longe dos seus que não volta a ver, e presenciar acontecimentos inesperados para o próprio, mas que para os leitores do século XXI são bem familiares. É aqui que entra o fantástico e somos confrontados com as inúmeras falhas na justiça divina, pelos olhos do maior pecador. É só uma viagem incrível e que nos leva para outras paragens e nos obriga a pensar que deus é este que permite que tantas atrocidades sejam cometidas e que, ele próprio, toma decisões fatais que caem sobre tantos inocentes.
Achei uma leitura extraordinária, mas sei que irei regressar a este livro quando tiver cumprido o propósito de ler, de forma literária, a Bíblia. É o livro fundador de grande parte, se não da totalidade, dos mitos da civilização ocidental e que se encontram em quase tudo o que lemos, por isso, conhecê-la parece-me importante para melhor compreender o que leio e tirar maior partido dessas leituras. Quando, como Caim, são baseados em histórias bíblicas, faz ainda mais sentido conhecer o dito livro sagrado. Mas, mesmo com conhecimentos básicos, esta é uma leitura que tem tanto para entregar, que podes perfeitamente ler e, assim, encontrar os ingredientes que fazem de Saramago no escritor ímpar que foi.
Já leste este livro de José Saramago? Gostaste do enredo fantástico? Qual o teu livro favorito do nosso Nobel? Conta-me tudo nos comentários e vamos conversar sobre este livro em particular, e sobre Saramago no geral!
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