Sinopse
Um homem fica cego, inexplicavelmente, quando se encontra no seu carro no meio do trânsito. A cegueira alastra como «um rastilho de pólvora». Uma cegueira coletiva.
Romance contundente. Saramago a ver mais longe. Personagens sem nome. Um mundo com as contradições da espécie humana. Não se situa em nenhum tempo específico. É um tempo que pode ser ontem, hoje ou amanhã. As ideias a virem ao de cima, sempre na escrita de Saramago. A alegoria. O poder da palavra a abrir os olhos, face ao risco de uma situação terminal generalizada. A arte da escrita ao serviço da preocupação cívica.
Opinião
José Saramago, nascido em 1922 na Azinhaga, é um dos maiores nomes da literatura contemporânea, sendo o único autor de língua portuguesa laureado com o Prémio Nobel da Literatura, em 1998. A sua obra é marcada por uma prosa singular, que desafia as convenções narrativas tradicionais, e pela exploração profunda da condição humana, da sociedade e das suas fragilidades. Ensaio sobre a Cegueira é uma das obras mais emblemáticas do escritor e estava a chamar por mim desde que veio morar para a minha estante, mas como procuro saborear a obra deixada por Saramago, só leio um livro dele por ano, o que tem adiado o momento de pegar neste seu livro tão comentado em toda a parte.
O romance narra a história duma epidemia inexplicável de cegueira que atinge uma cidade inteira, levando os seus habitantes a um colapso social e moral. A obra explora temas como a fragilidade da civilização, a natureza humana em situações extremas e a luta pela sobrevivência, revelando a cegueira não só física, mas também a cegueira moral e social que permeia as relações humanas. A história começa quando um homem dentro do seu carro, parado num semáforo, subitamente fica cego, incapaz de avançar com o seu carro, provocando o caos no trânsito e inúmeras reações ao seu redor. Todos os que se aproximaram deste homem, bastando partilhar uma sala de espera num consultório médico, viram-se contaminados com a cegueira branca, sem que conseguissem encontrar qualquer explicação para o fenómeno. É a partir deste momento que a sociedade, que antes se organizava de maneira convencional, desmorona, revelando instinto humano na sua essência mais primitiva.
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No meio do caos, o governo decide colocar os cegos em quarentena, num antigo asilo, bem como todos os que, embora ainda vissem, tivessem estado em contacto com os novos cegos. Assim, um pequeno grupo de indivíduos, incluindo uma mulher que misteriosamente mantém a sua visão, luta para sobreviver e preservar a humanidade num mundo onde a moralidade e a civilização parecem desvanecer. É a partir deste gatilho inicial que a sociedade se vê mergulhada num caos crescente, com os cegos a serem guardados e impedidos de sair pelos militares assustados que se encontram à porta do asilo, mas que, gradualmente, começam também a cegar, sendo levados para outro lugar de isolamento, que apenas recebe pessoas das forças armadas. Assim, este fenómeno, além de ser uma condição física, torna-se uma metáfora poderosa para a ignorância e para a incapacidade de ver a realidade ao nosso redor.
"São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos."
Em Ensaio sobre a Cegueira encontramos uma galeria de personagens, todas sem nome, como se esse detalhe fosse supérfluo diante do mal que os acometeu de repente. Temos o médico, um oftalmologista que fica cego depois de ter consultado o primeiro cego e perceber, com espanto, que não existia nenhuma doença que impedisse o homem de ver. A mulher do médico parece ser a única que mantém a visão, mesmo quando afirma estar cega para acompanhar o marido na quarentena imposta, e que se revela a salvação dos que a rodeiam, sendo capaz de orientar e resolver muitos problemas, resistindo e conseguindo que o seu grupo mantenha alguma dignidade, além de ser a única que consegue ver o tamanho da degradação que os rodeia, durante e depois do confinamento. E depois temos o melhor personagem de todos: o cão das lágrimas, que me deixou completamente sem palavras de tão especial que é este animal, mais humano do que todos os que eram suposto ser. Na verdade, Saramago utiliza cada um dos personagens para explorar a profundidade e complexidade da natureza humana e da dinâmica social, levando-nos a ponderar até onde a humanidade pode ir quando confrontada com a sua própria cegueira.
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Num cenário distópico, Saramago explora e obriga-nos a refletir na fragilidade da civilização. A obra revela como, sob a pressão do caos e da desordem, as máscaras da civilização rapidamente se desfazem, expondo a vulnerabilidade dos indivíduos e das estruturas sociais. A cegueira desencadeia uma regressão moral que leva à brutalidade e à desumanização. A fragilidade das relações sociais, a corrupção do poder e a luta pela sobrevivência revelam uma crítica contundente à sociedade contemporânea, embora aparentemente sólida, está sempre à beira do colapso diante da irracionalidade e do medo. No entanto, à medida que a sociedade desmorona, o autor ilustra como a solidariedade pode emergir no meio da adversidade, com alguns indivíduos se unindo para ajudar uns aos outros, enquanto outros se entregam à brutalidade e ao egoísmo, lutando pela sobrevivência a qualquer custo.
"Tanto nos custa a ideia de que temos de morrer, disse a mulher do médico, que sempre procuramos arranjar desculpas para os mortos, é como se antecipadamente estivéssemos a pedir que nos desculpem quando a nossa vez chegar."
Como já nos habituou, José Saramago apresenta aqui o seu estilo de escrita singular que se destaca pela sua fluidez e complexidade. A ausência de pontuação convencional cria um fluxo contínuo que desafia o leitor a manter-se atento e engajado com a narrativa, para não perder nada de importante para a total compreensão da sua obra. As longas frases entrelaçam diálogos e descrições, sugerindo uma proximidade íntima entre os personagens e as suas experiências. Esta técnica confere um ritmo quase musical à leitura, e ainda reflete a confusão e o caos que permeiam o enredo, à medida que a epidemia da cegueira avança. Além disso, a ausência de nomes próprios para os personagens - que são identificados pelas suas características ou funções - universaliza a experiência, tornando-a mais simbólica e permitindo que o leitor veja a condição humana num sentido mais amplo, e ainda intensifica a mensagem crítica de Saramago.
O livro não desilude e agora compreendo porque se tornou numa das suas obras mais emblemáticas e comentadas. Saramago provoca-nos e obriga-nos a ver além da superficialidade das relações humanas e a valorizar a luz da consciência e da compreensão mútua. Com certeza, entrou para os meus favoritos do autor e da vida e só posso recomendar-te, caso ainda estejas reticente, porque vais descobrir um autor e uma história inesquecíveis. Esquece as dúvidas e os medos e aventura-te pelo universo único de Saramago! Agora, convido-te a deixares a tua opinião! Já leste Ensaio sobre a Cegueira? O que sentiste com esta história? Qual a tua personagem favorita? Viste o filme baseado no livro? Conta-me tudo nos comentários!
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