Sinopse
Raramente a literatura universal produziu um texto tão sensível e humano quanto este. O filho de mil homens é uma obra da ourivesaria literária de Valter Hugo Mãe. Uma experiência de amor pela humanidade que explica como, afinal, o sonho muda a vida.
Crisóstomo, um pescador solitário, ao chegar aos quarenta anos de idade, decide fazer o seu próprio destino. Inventa uma família, como se o amor fosse sobretudo a vontade de amar.
Sempre com a magnífica capacidade poética de Valter Hugo Mãe, esta história é um elogio a todos quantos resistem para além do óbvio.
Com prefácio de Alberto Manguel
Através de um desdobramento magistral de personagens estranhas e únicas, Mãe oferece-nos uma espécie de catálogo da extraordinária variedade dos elementos da nossa espécie e das admiráveis qualidades de cada um deles.
Alberto Manguel, Prefácio
Opinião
Regresso a Valter Hugo Mãe com O filho de mil homens, que se coloca num Portugal rural para explorar, com uma prosa lírica e sem medo da ousadia lexical, a relação entre um homem e o filho que ele acolhe, questionando o que significa família, paternidade e pertencimento. A voz singular do autor, com a sua linguagem poética e experimental, convida-nos a sentir o peso do tempo, a fragilidade humana e a força da empatia. Autor português contemporâneo, que acredito que se irá tornar num clássico daqui a muitos anos, é reconhecido pela inventividade linguística e pela sensibilidade com que retrata pessoas comuns em situações extraordinárias. As suas obras destacam-se pela cadência de frases, pelo uso de neologismos e pela fusão do realismo com o inesperado.
Publicado em 2011, O filho de mil homens surge num momento de afirmação da nova geração da literatura portuguesa, recebendo a atenção da crítica pela prosa poética, pelo ritmo cadenciado e pela imagética incomum. A obra ajudou a projectar Valter Hugo Mãe no panorama literário, funcionando como demonstração da sua voz singular e dum estilo que combina simplicidade aparente, musicalidade e sensibilidade para o humano marginalizado. Neste sentido, a obra dialoga tanto com o realismo social quanto com uma vertente mais sensível e experimental da língua, aproximando-se duma tradição portuguesa que privilegia a linguagem como matéria poética, a interioridade e as ambiguidades morais. Faz parte, assim, duma renovação da literatura que recusa a frieza narrativa e abre espaço para o humano vacilante, a memória e a beleza que coexistem com o grotesco quotidiano.
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Este romance mergulha numa vila onde o tempo parece entrelaçar a memória, o mito e o quotidiano. A história acompanha o desejo de um homem por ter um filho e criar uma família, numa narrativa que atravessa dor, afecto, riso e rituais simples do dia a dia e que se cruza com outras figuras que, apesar do seu passado, ainda podem ter esperança de que o amor lhes seja permitido. A voz que nos conduz nesta narrativa é suave e ao mesmo tempo firme, sem abrir mão da ternura. O resultado é uma prosa que parece respirar em sílabas simples, transformando o comum em mito, a perda em celebração e o afecto em força capaz de acolher o milhar de vozes que compõem a nossa casa interior. A linguagem tem uma musicalidade áspera, enquanto a narrativa não avança por milagres dramáticos, mas por gestos simples, por silêncios que pesam, por uma insistência no mínimo que revela tudo. É uma leitura que não grita, mas permanece, áspera e sensível, como quem aprende a ouvir a cadência do mundo.
"Não adianta sonhar com o que é feito apenas de fantasia e querer aspirar ao impossível. A felicidade é a aceitação do que se é e se pode ser."
O narrador adopta um registo coloquial, com frases curtas e ritmadas, quase cantadas, que aproximam o leitor da intimidade do cuidado entre pai e filho. O estilo funciona como veículo tanto do afecto quanto da crítica social, sem recorrer a argumentos abertamente discursivos, mas pela forma que mantém a radicalidade do humano. Também o ponto de vista molda o entendimento, pois pode aproximar-nos dos acontecimentos e das intenções, mas também exigir do leitor uma participação activa para discernir a verdade por trás das histórias contadas. O grande protagonista é Crisóstomo, o pescador que decide criar a sua família, mas também Isaura, a mulher sofrida, cuja vida de perdas e desilusões a leva até ao homem que lhe vai ensinar que a felicidade é possível desde que se decida a ser feliz; e o filho, Camilo, uma criança que já tinha perdido todas as figuras familiares, de sangue e de amor, e que encontra o pai que o ama neste pescador. Por fim, o Antonino, homossexual que lutou contra esta realidade por amor à mãe e desejo de não a voltar a desiludir, primeiro marido de Isaura, a quem não foi capaz de fazer feliz como marido. Mas foi nesta família invulgar que encontrou o lugar onde se sentia aceite e querido, sem julgamentos nem medo de ser quem era.
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É em torno deste quarteto que surgem histórias paralelas, antigas e que nos explicam as razões para os encontrarmos sozinhos ao longo da trama. São vizinhos, parentes e outras pessoas da comunidade que funciona como espelho, juiz e palco para as tensões de vidas que procuram significado, pertencimento e dignidade. É esta dinâmica entre os personagens que é o verdadeiro motor da narrativa. O elo entre o homem que acolhe uma criança gera afecto, tensão e muitas questões e tem como consequência um desenrolar de uniões entre as pessoas que precisavam dessa família que o homem desejava. A construção da identidade é um entrelaçado de memórias, vínculos afectivos, antigos e recém criados, e práticas de linguagem que vão moldando quem cada personagem é e que poderá ser. Esses vínculos, essa família, vai muito para além da biologia, pois mostra que um filho pode ser o resultado de laços criados pela presença, pelo cuidado e pela partilha dum destino comum.
"O toque de alguém, dizia ele, é o verdadeiro lado de cá da pele. Quem não é tocado não se cobre nunca, anda como nu. De ossos à mostra."
O impacto emocional vem todo da forma discreta mas profunda com que o autor se aproxima dos seus personagens, transformando o quotidiano, a fragilidade e o afecto em matéria poética, capaz de provocar surpresa, dor e até calor humano. A sensibilidade social aparece no olhar atento às estruturas de classe, às relações de poder e às formas de cuidado comunitário, tratadas sem jactância moralista, apenas com empatia e discernimento. No seu conjunto, o que funciona é essa confluência entre originalidade, impacto emocional, sensibilidade social e uma prosa que, apesar da aparente simplicidade, revela uma complexidade estética e humana notável.
Recomendaria esta leitura a todos os apreciadores de literatura contemporânea lusófona, que valorizam uma linguagem poética e uma prosa que se desenrola em imagens simples, porém com uma carga emocional complexa. Jovens adultos ou adultos curiosos, vão aqui encontrar satisfação para o seu gosto por temas como memória, afecto, paternidade e pertencimento, e que valorizam narrativas que não seguem apenas a linha do tempo, mas capazes de nos levar pelo passado dos personagens, criando pontes inesperadas entre eles. Para mim faz sentido uma leitura calma e ponderada, para absorver todos os detalhes e a musicalidade do texto. Agora, quero muito saber a tua opinião! Já leste O filho de mil homens? O que esta prosa despertou em ti? Qual o momento que mais te marcou? Tens algum personagem favorito? Que outros livros de Valter Hugo Mãe recomendas? Conta-me tudo nos comentários!
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