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terça-feira, 14 de outubro de 2025

#Livros - Pão de Açúcar, de Afonso Reis Cabral

 

Foto de capa: a cave de um prédio abandonado, com paredes desbastadas e iluminação sombria; ao fundo, um poço e uma bicicleta encostada, tudo em tons desbotados que transmitem desolação urbana.

Sinopse

Em Fevereiro de 2006, os Bombeiros Sapadores do Porto resgataram do poço de um prédio abandonado um corpo com marcas de agressões e nu da cintura para baixo. A vítima, que estava doente e se refugiara naquela cave, fora espancada ao longo de vários dias por um grupo de adolescentes, alguns dos quais tinham apenas doze anos. 

Rafa encontrara o local numa das suas habituais investidas às zonas sujas, e aquela espécie de barraca despertou-lhe imediatamente o interesse. Depois, dividido entre a atracção e a repulsa, perguntou-se se deveria guardar o segredo só para si ou partilhá-lo com os amigos. Mas que valor tem um tesouro que não pode ser mostrado? 

Romance vertiginoso sobre um caso verídico que abalou o País, fascinante incursão nas vidas de uma vítima e dos seus agressores, Pão de Açúcar é uma combinação magistral de factos e ficção, com personagens reais e imaginárias meticulosamente desenhadas, que vem confirmar o talento e a maturidade literária de Afonso Reis Cabral. 


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Opinião 

Esta foi a minha estreia com o autor Afonso Reis Cabral, neste que é o seu segundo romance, e que reconstitui, a partir duma sequência ficcional, o caso que chocou o Porto com o assassinato de Gisberta. O crime aconteceu em 2006 e este livro foi publicado em 2018, e isto só mostra como sinto que dou pouca atenção aos autores nacionais contemporâneos. Os prémios têm pouca importância quando escolho as minhas leituras, mas é impossível ignorar o reconhecimento que este jovem tem tido, logo desde o início do seu percurso e, agora que o li, compreendo melhor porque tem dado tanto que falar e vou lhe prestar mais atenção daqui para a frente. 


Estamos perante um caso cujos contornos revelam bem as fissuras da sociedade portuguesa, ocultas nas margens para nossos melhor conforto. O crime foi cometido por um grupo de rapazes, de diferentes idades, e envolveu violência brutal dirigida a alguém marginalizado pela condição de género, por não ter onde morar e pela inevitável exclusão social. Na verdade, a obra testa os limites entre memória, testemunho e invenção, pois o romance não pretende ser uma transcrição jornalística nem um documento factual imutável, mas uma ficção que reimagina cenários, silêncios e silhuetas para entender as forças sociais que produziram a violência. Já o Porto, em Pão de Açúcar, é cenário funcional e simbólico. A geografia urbana não é apenas palco, mas motor da narrativa, convocando trajectos, encontros e desencontros que revelam dinâmicas de classe, de geração e de marginalização. 


Podes ler também a minha opinião sobre O filho de mil homens 


Afonso Reis Cabral apresenta-nos um retrato contundente do assassinato de Gisberta, articulando a narrativa entre memória, culpa e investigação. A obra segue a trajetória dum jovem narrador que, ao reconstruir os acontecimentos relacionados com o crime, expõe as dinâmicas de violência, preconceito e exclusão social que cercam tanto a vítima quanto os agressores. A narrativa alterna-se entre o momento que o primeiro jovem encontrou a Gisberta e a sua pobre barraca no edifício abandonado e o que se seguiu, e o passado da mulher trans, desde vislumbres da infância, do auge como protagonista de espectáculos até ao declínio que a levou à prostituição e às drogas, o que revela as fragilidades, as tensões familiares e a sociedade que permitiu, ou tolerou, o acto final de violência. 


"O meu quotidiano era habitado por gajos como o Fábio, que batem, e como o Leandro e o Grilo, que obedecem, os que abusam e os que se deixam abusar, mas também por amigos que falavam sem freio como o Nélson e por amigos como o Samuel, cujo silêncio dizia mais." 


A estrutura do livro está organizada em capítulos curtos que funcionam como blocos de sensação e observação, fornecendo pequenas janelas sobre o que acontece e sobre o que levou ao desfecho que esperamos que aconteça a qualquer momento. Os pontos de vista são polifónicos, alternando entre diferentes personagens e registos de fala, o que entrega ao leitor muitas informações que permitem contextualizar e perceber como aquela mulher se encontrou naquele lugar e como aqueles rapazes lá chegaram. Em termos de temporalidade, o romance não avança de forma linear, ele opera com saltos, retornos e interrupções que descontroem a cronologia comum, entrelaçando presente e passado para revelar as camadas de violência social que envolvem o caso da Gisberta e o ambiente urbano do Porto. 


Podes ler ainda a minha opinião sobre Ensaio sobre a Cegueira 


O romance mantém-se longe da denúncia sensacionalista, mas articula uma violência que se infiltra nas relações, nas margens da cidade do Porto, nas falas que desumanizam e nas estruturas que, muitas vezes, silenciam a dor de quem é diferente. O autor transforma a invisibilidade social dos vulneráveis no eixo dramático da narrativa. Assim, os personagens à margem são apresentados não apenas como vítimas, mas como seres cuja existência é reiteradamente deslegitimada pela sociedade. Afinal, os silêncios e omissões são uma prática quotidiana que molda escolhas, relações e que tem consequências. Encontramos a memória coletiva nos recortes de jornais, na sentença dos menores, nos gestos morais da sociedade, que se cristaliza em espaços simbólicos do Porto que tornam o crime notícia, memorial e alerta simultâneos. Mas o romance está focado na memória individual, que emerge em fragmentos, lembranças involuntárias, lapsos de tempo que não cabem nos grandes relatos dos factos. 


"Dali veríamos as coisas de outra maneira, os problemas ficariam na cave. Os dela, a morte que a comia por dentro, que a obrigava a abdicar a cada dia; os meus, saber que a necessidade de a ajudar só fazia sentido por ambos não termos mais ninguém." 


Pão de Açúcar é uma construção polifónica, onde o protagonista central é, em primeiro plano, o jovem que encontrou a Gisberta e começou por a ajudar, cujas perspectivas, dúvidas e falácias vão moldando o enredo. Por outro lado, temas a Gisberta, figura iluminada pelos fragmentos do passado e pelo relato da degradação em que se encontrava no final que se aproximava. Se a relação tivesse permanecido entre os dois, não teria acontecido um crime cruel. Mas o jovem começou por partilhar o segredo com os amigos, que se juntaram a ele nas visitas à cave. Foi nesse momento que percebeu que tinha um rival para as confidências daquela mulher doente e os ciúmes corroeram qualquer bondade que nele existia. Ao partilhar com outros elementos do lar onde todos viviam, abriu as portas para o horror e perdeu o controlo sobre o destino, o dela e o dele. Quando a violência atinge o seu auge, só lhe resta juntar-se à manada e descarregar naquele corpo frágil toda a fúria e revolta, toda a repulsa e desprezo. 


O autor compõe um romance quase documental, mas carregado duma energia tenaz que desarma a crueldade ao narrar não apenas os factos, mas o tempo que os ensinou a circular pela cidade, a sobreviver aos abusos de que também eram vítimas, e a repetir em alguém mais fraco o que conheciam nas suas vidas. O resultado é uma obra que não celebra nem condena de modo simplista. Observa, compara, denuncia e, sobretudo, convence pela precisão do gesto literário, transformando o ocorrido em reflexão sobre quem somos quando deixamos de ver o que está diante dos nossos olhos. O impacto da leitura de Pão de Açúcar é, acima de tudo, um desconforto que vai crescendo a cada novo capítulo. O livro é relativamente pequeno e, aparentemente, poderia ser lido rapidamente, um ou dois dias, mas penso que seja impossível, porque a tensão está sempre presente, num crescendo que nos causa ansiedade. Saber o final é avassalador, quando lemos o que lhe antecedeu. 


Quando cheguei ao final do livro, tinha a certeza de ter lido algo especial e muito marcante. Que me irá acompanhar durante muito, muito tempo. É um livro que não deixa ninguém indiferente e que nos agarra e nos atinge como um murro no estômago. Voltei a pegar nele agora para escrever esta resenha e foi difícil não reler tudo. Portanto, só te posso deixar a recomendação, até porque existem histórias que não podem ser esquecidas. Pessoalmente, gostaria muito de saber mais sobre estes rapazes, sobre o que são hoje, se existe arrependimento. Sei que está a ser feito um documentário, que aguardo com curiosidade e que espero que fique disponível também aqui em Portugal. Mas agora quero muito saber a tua opinião! Já leste Pão de Açúcar? Acompanhas o trabalho de Afonso Reis Cabral? Já conhecias este crime que tanto marcou o Porto? Sentiste que a Gisberta foi bem retratada no livro? O que pensas sobre estes rapazes e os seus actos criminosos? Concordas com as suas penas? Conta-me tudo nos comentários! 


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Wook | Bertrand 

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