Sinopse
A última grande tertúlia de Lisboa - que marcou culturalmente, politicamente várias décadas portuguesas - teve lugar no Botequim, bar do Largo da Graça criado e projectado por Natália Correia.
Nele fizeram-se, desfizeram-se revoluções, governos, obras de arte, movimentos cívicos; por ele passaram presidentes da República, governantes, embaixadores, militares, juízes, revolucionários, heróis, escritores, poetas, artistas, cientistas, assassinos, loucos, amantes em madrugadas de vertigem, de desmesura.
A magia do Botequim tornava-se, nas noites de festa, feérica. Como num iate de luxo, navegava-se delirantemente (é uma viagem assim que neste livro se propõe) em demanda de continentes venturosos, de ilhas de amores a encontrar.
O futuro foi ali, como em nenhuma outra parte do País, festivamente antecipado - nunca houve, nem por certo haverá, nada igual entre nós.
Opinião
O Botequim da Liberdade é uma viagem pelas memórias de Fernando Dacosta, onde o autor nos conduz ao coração de Lisboa e às suas experiências no emblemático bar de Natália Correia. Com uma escrita que combina nostalgia e reflexão, Dacosta oferece ao leitor uma visão íntima dum espaço que simboliza a liberdade, a convivência entre gente tão diferente e a cultura literária que girava em torno da figura de Natália. Ponto de encontro de intelectuais, artistas e políticos, era também símbolo de resistência, antes e depois de Abril, e de expressão cultural, onde histórias pessoais se entrelaçam com o contexto histórico e social de Portugal ao longo dos anos.
Fernando Dacosta é um romancista, dramaturgo, conferencista e jornalista, nascido em Angola e chegou a Portugal ainda criança. Ao longo da sua carreira, são muitas as obras que publicou, muitas voltadas para a guerra colonial e os retornados, mas este livro de memórias é o primeiro que leio do autor. A sua relação estreita com o mundo literário e cultural de Lisboa, especialmente através de locais como O Botequim e com a própria Natália Correia, revela-se como uma parte fundamental da sua trajetória e modeladora do que escreveu, tanto em jornais quanto nas suas obras literárias. Nesta narrativa, o bar serve de pano de fundo, mas muitas vezes as memórias extravasam as suas paredes e acompanhamos as viagens pelo país com Natália e outros autores ou as tertúlias que aconteciam na sua casa, apresentando vislumbres de encontros memoráveis, debates intelectuais e momentos de reflexão que marcaram estes anos turbulentos da sociedade portuguesa.
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No fundo, o bar é apenas um pretexto para lembrar Natália. Figura marcante do século XX português, aqui vemos a anfitriã e intelectual que simboliza a efervescência cultural da cidade, sempre rodeada das mais diferentes pessoas, representadoras do panorama multifacetado da sociedade lisboeta. São figuras determinantes para a construção da democracia, como Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio, Sá Carneiro, Snu Abecassis ou Otelo Saraiva de Carvalho, só para dar alguns exemplos, que se sentaram no Botequim e lá discutiram o país com esta mulher de personalidade forte e opiniões próprias, capaz de com todos conversar, com poucos concordar. Os artistas também lá marcaram presença, como Amália Rodrigues, José Saramago, José Cardoso Pires, Lygia Fagundes Telles ou Maria João Pires, entre tantos outros, que compunham a festa das artes que eram sempre lá celebradas e exultadas.
"A complexidade que Natália apreende nos outros sabe-a em si, e não se lhe furta. Cultiva-a mesmo como elemento identificador, enriquecedor."
No livro, Fernando Dacosta transporta-nos para um cenário vibrante, num Portugal em ebulição, primeiro na luta contra a ditadura, depois de Abril, contra os abusos dos primeiros anos, para terminar com a batalha por instaurar uma democracia plena. O bar de Natália funciona como um espaço de encontro e confraternização, onde as paredes carregas de histórias e memórias criam uma atmosfera repleta de nostalgia e autenticidade. Além de reforçar o clima de liberdade, retrata bem o espírito boémio e livre que permeia as memórias do autor, tornando o lugar quase um personagem vivo na narrativa. Ao longo desta narrativa, existem temas centrais como a liberdade, elemento fundamental, ou a amizade, força vital que fortalece os laços que os unem, e a própria cultura é explorada, com as suas tradições, e a poesia, sempre protagonista em todas as conversas.
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Através destas estórias, o autor revela a importância do convívio, da amizade e do diálogo como elementos essenciais para a construção duma sociedade mais livre e pluralista. Dacosta convida-nos a valorizar estes momentos de comunhão, que representam a essência da liberdade e da resistência cultural, reforçando a ideia de que a história dum povo também se constrói nas mesas de bar e nas conversas partilhadas. A escrita do autor caracteriza-se por uma prosa envolvente e repleta de nuances, que combina uma narrativa poética com uma sensibilidade aguçada para os detalhes do quotidiano. A sua linguagem é marcada por uma nostalgia e uma forte carga emocional, transportando-nos para as suas memórias ao redor da icónica Natália Correia. Com uma escrita introspectiva, repleta de observações subtis e de referências culturais, o que confere ao texto uma profundidade tanto pessoal quanto literária.
"Todas as acções, todos os actos têm, na verdade, atrás de si um sonho, um desejo; sonhar, desejar, não é desperdiçar tempo, é semear iluminações, puxar o futuro, invocar o superior, maneira de sermos deuses, pequenos e ternos deuses de ficção."
Um dos pontos fortes de O Botequim da Liberdade é a sua narrativa cheia de charme que nos leva numa verdadeira viagem no tempo. No entanto, uma possível dificuldade na leitura reside na riqueza de referências culturais e históricas que podem exigir algum conhecimento prévio do contexto lisboeta e da trajetória de Natália Correia, tornando a leitura mais desafiadora para aqueles menos familiarizados com esse universo. Também a forma errática como tudo é narrado, pode constituir uma dificuldade, pelo menos, até entrarmos no ritmo e conseguirmos unir as pontas soltas que nos são entregues a cada novo capítulo. Ainda assim, vale muito a pena esta leitura pela evocação pungente e sincera do encontro entre memória, amizade e o espírito da liberdade, numa bonita homenagem à extraordinária Natália Correia. No final, fica uma impressão duradoura de nostalgia e valorização das raízes culturais.
Esta leitura irá interessar a todos os interessados na cultura, muito centrada em Lisboa, bem como os que apreciam memórias literárias e relatos pessoais, sem esquecer, claro, os apaixonados pela figura de Natália Correia. Mas agora, quero muito saber a tua opinião! Já conhecias este livro? E o autor? Gostas de ler livros de memórias? Estás familiarizada com a personagem Natália Correia? Conta-me tudo nos comentários!


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