Sinopse
Fernando Pessoa é, a par de Luís de Camões, o maior poeta português. E é uma das figuras proeminentes do modernismo europeu, juntamente com escritores como Kafka, Joyce e Proust. O seu vastíssimo legado - da poesia, drama e ficção ao artigo de opinião e escrita mediúnica, cruzando e aprofundando inúmeros domínios do conhecimento (da literatura à religião, passando pela história, a filosofia, a astrologia e tantos outros) - tem vindo a ser progressivamente conhecido pelos leitores portugueses e de todo o mundo.
Porém, o homem por detrás da extraordinária multiplicidade de vozes (os heterónimos e dezenas de outros autores ficcionais), e de uma das obras literárias mais complexas e ricas de todos os tempos, é quase um desconhecido. João Gaspar Simões, com a publicação da sua biografia em 1950, teve o grande mérito de reconhecer a importância de Fernando Pessoa numa altura em que o poeta ainda não era justamente apreciado. Mas a obra não se baseou numa pesquisa mais aprofundada e desde há muitos anos que se sentia a falta de uma obra biográfica de referência.
PESSOA: A BIOGRAPHY, do autor norte-americano naturalizado português Richard Zenith, publicado nos EUA e na Grã-Bretanha em 2021 e que agora se publica em Portugal, vem suprir definitivamente essa lacuna.
Opinião
Nem acredito que consegui terminar as mais de mil páginas que contém esta biografia e que prometia apresentar-nos um retrato do homem Fernando Pessoa por trás do mito e do génio literário. Apesar de em vida ter sido discreto, embora personagem preponderante do meio das artes de Lisboa, a sua fama existia mas estava circunscrita aos mais eruditos da época, que vivam no meio boémio, nos cafés lisboetas onde se encontravam e discutiam a arte e a política da nação. Durante alguns meses, viveu na minha mesa de cabeceira este calhamaço, e que interessante e fascinante que foi esta viagem pelos mistérios de Pessoa.
O trabalho de pesquisa do autor é notório desde a primeira página, com todas as informações prévias que nos coloca à disposição, desde uma lista de todos os heterónimos ou autores ficcionais criados por Fernando desde a infância até ao final da vida; mapas que nos permites visualizar os lugares por onde ele passou e viveu; uma árvore genealógica materna, que nos facilita o processo de entender as complexas ligações familiares com muitas tias e tios a povoarem a sua infância e juventude e, por fim, uma cronologia da vida de Pessoa simplificada e que resume o que lemos ao longo das quatro partes que compõem a biografia.
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Começa por nos contar sobre o seu contexto familiar, quem eram os seus pais, como viviam, como era a vida quando Fernando nasceu e passou a integrar esta família. Os familiares com quem conviveu nesta primeira infância em Lisboa foram determinantes para a construção da sua personalidade, dos seus medos, das suas preocupações no futuro, e para a sua fervilhante imaginação. Estes primeiros anos foram vividos com o filho no centro, figura mimada por toda a família, protegido pelas tias e tios que se ocupavam deste menino sempre que a doença do seu pai se agravava. A figura da avó paterna, que sofria de uma doença mental, também seria essencial para a construção do seu mito pessoal de genialidade a beirar a loucura, bem como o irmão mais novo que perdeu muito próximo da altura em que o seu pai também morreu, que contribuiu para a sensação de solidão, de membro isolado e único da família que tinha sido perdida tão cedo.
"Mais do que quaisquer pessoas que conheceria ou coisas que veria durante a experiência sul-africana, Fernando haveria de prezar o novo mundo de palavras que a língua inglesa lhe abriu."
O fim deste ciclo, foi ponto de viragem para toda a sua vida. A sua mãe viúva, ainda jovem e bonita, apaixona-se perdidamente por outro homem com quem acaba por casar e construir uma nova família. Só que esta decisão implica que terá de ir morar para outro Continente, e a dúvida será se vai deixar o primeiro filho em Portugal com a sua família ou se o levará consigo para a perigosa África. O pequeno Fernando já tinha perdido pai e irmão, por isso, tinha pouca vontade de se despedir também da sua mãe. Acaba por embarcar para África do Sul e aí completar a sua formação formal, iniciando o seu domínio do inglês que seria uma pedra importante na sua escrita criativa e também no conhecimento que obteve de outros autores na língua original.
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Depois desta infância e adolescência conturbada, com muitas perdas e descobertas, regressa a Lisboa e volta a encantar-se pela cidade e pela sua língua, pelo património cultural que acredita que só Portugal poderá iniciar e levar para o mundo. Será aqui que começa a construção mental do seu Quinto Império, a desilusão com a vida conturbada da política portuguesa, encontrando o final problemático da monarquia e o início agitado da república. Ao ser espectador de todos estes acontecimentos, escreve inúmeros ensaios políticos sobre o que se passa, tentando explicar os factos por vezes, outras propondo soluções. Estes anos atribulados em Lisboa são um motor para muito do que escreveu nesta fase, mas também o colocam em contacto com personagens artísticas que serão as fundadoras do movimento que vai liderar nos anos subsequentes.
"Pessoa era um íman passivo, apenas tenuemente consciente de que estava a tornar-se um guia. Não era um papel que ambicionasse, em parte porque desconfiava de iniciativas colectivas, preferindo na maior parte das vezes agir sozinho, representando-se apenas a si próprio, mas formou-se de modo espontâneo um círculo de escritores que girava à sua volta, embora de início ninguém o tivesse notado. Eram apenas jovens que se reuniam, aparentemente sem chefe, e Pessoa era aquele que falava mais baixinho. Mas era o centro de gravidade do grupo - uma densa concentração de força intelectual, erudição, linguagem e cultura, que tinha a capacidade de pensar e perceber a partir de novos ângulos, um Pound ou um Eliot português."
A sua genialidade é evidente desde cedo, moldada por figuras fundadoras da sua juventude, mas também pela sua curiosidade latente e pelo seu desejo de ser uma personagem importante do panorama cultural, quase como se fosse uma certeza de que tinha um propósito na vida, elevar o seu país, tornar-se maior do que todos os outros, maior do que Camões inclusive. A forma como se prepara para isso, escrevendo, escrevendo sempre e muito, criando os heterónimos e lançando-os para o mundo ainda antes de si próprio, só mais tarde explicando de forma complexa a génese da sua criação, como necessidade de colocar como indivíduos as muitas personalidades que o habitavam.
A verdade é que estamos perante um autor que terminou muito pouco do que se propôs fazer. As ideias surgiam a uma velocidade que não conseguia acompanhar para as concretizar. Passou muito mais tempo a imaginar o que iria escrever, do que a escrever essas obras que considerava essenciais para a obra que pretendia deixar como legado. Ainda assim, deixou obras-primas como o extraordinário Livro do Desassossego, que levou mais de cinquenta anos para ser reunido e publicado, ou o poema épico Mensagem, único livro que publicou em vida e que pretendia ultrapassar Os Lusíadas de Camões.
"De facto, nunca parou de nos mostrar quem era ou estava a tentar ser. Os poemas e os textos em prosa eram ele, a própria pessoa dele, ou os fragmentos da pessoa, ou Pessoa, que não existia enquanto tal. A sua vida sexual? A vida sua espiritual? Podem ser encontradas na escrita dele e em mais lado nenhum que não nela. Não existe um Pessoa secreto para o biógrafo revelar."
Esta biografia coloca a nu os altos e baixos da vida do homem por trás do mito, os momentos de ascensão, quando acreditava que lhe cabia uma papel importante e até primordial na construção de um Portugal maior e mais glorioso, e os de depressão, quando se sentia desiludido e incapaz de atingir o seu potencial artístico, de alcançar a glória que sabia lhe caber por mérito total e absoluto. Os seus interesses, os seus sonhos, as suas dúvidas existenciais, tudo o que foi se encontra plasmado na sua obra. No início só se encontra entusiasmo, esperança e promessas, mas quando sentimos que se aproxima o fim da curta vida de Fernando tudo isso dá lugar a uma tristeza, nostalgia e muita pena pelo homem que não viveu para ver o que se tornaria o seu nome, nem para recolher os louros do legado inestimável e ainda totalmente por descobrir que nos deixou em herança.
Já leste esta biografia de Fernando Pessoa? Serás capaz de aceitar o desafio e mergulhar neste calhamaço e deliciar-te com uma vida comum e, ao mesmo tempo, ímpar? O que sabes sobre esta personagem incontornável da Literatura portuguesa? Conta-me tudo nos comentários e vamos conversar sobre Pessoa!