Sinopse
No verão de 1885, três cavalheiros franceses chegaram a Londres para alguns dias de «compras decorativas e intelectuais». Um era príncipe, outro era conde e o terceiro era um plebeu com apelido italiano que, alguns anos antes, fora retratado numa das extraordinárias telas de John Singer Sargent. Era ele Samuel Pozzi, médico da melhor sociedade, ginecologista pioneiro e livre-pensador - um homem racional, de espírito científico e com uma vida privada conturbada.
Em fundo, a Belle Époque parisiense, um período de muito glamour e prazer, mas com um lado negro também - de histeria, narcisismo, decadência e violência.
O Homem do Casaco Vermelho é, assim, em simultâneo, um original e vívido retrato da Belle Époque - e dos seus heróis, vilões, escritores, artistas e pensadores - e de um homem à frente do seu tempo. Um livro cheio de espírito e profundamente documentado, que mostra e defende a frutuosa e duradoura troca de ideias através do Canal da Mancha que fez a grandeza da Europa.
Opinião
Julian Barnes é um dos autores mais proeminentes da literatura contemporânea, conhecida pela sua prosa elegante e perspicaz. Nascido em 1946, na Inglaterra, Barnes construiu uma carreira marcada por uma diversidade de géneros, que vão do romance à crítica literária, passando por ensaios e contos. O seu trabalho frequentemente explora temas como a memória, a identidade e a complexidade das relações humanas. Com uma escrita que combina erudição e acessibilidade, conquistou diversos prémios, incluindo o Booker Prize. No livro O Homem do Casaco Vermelho, encontramos um ensaio sobre uma época que começa com um trio em viagem de Paris para Londres e que acompanhamos num registo que nos apresenta as maiores figuras da sociedade francesa e também da inglesa. Comprei-o na última visita que fiz à Feira do Livro de Lisboa, embora não soubesse bem o que esperar desta leitura, que foi toda uma descoberta.
Passado entre o final do século XIX e o início do século XX, conta-nos sobre a Belle Époque, um período histórico complexo e que combina conceitos contrastantes que conviviam simultaneamente. A narrativa é rica em elementos do quotidiano, com os cenários que refletem a vida urbana e as interações sociais que moldam os nossos personagens. Esta ambientação torna-se um personagem em si mesmo, detalhado e cativante, que nos transporta para o passado histórico e cultural e que nos leva a refletir sobre a inexorabilidade do tempo. Ao explorar a figura dum homem como Samuel Pozzi, sem ascendência nobre mas com notoriedade e dinheiro, leva-nos a entender o quanto a subjetividade molda a nossa percepção do passado.
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Por outro lado, a identidade é explorada na tensão entre o eu individual, que temos poucas evidências para analisar, e as influências externas, como o ambiente social e as relações interpessoais. No caso de Pozzi, as suas relações foram com as figuras mais famosas da sua época, com quem conseguiu manter amizades duradouras, mesmo com as personalidades mais distintas e até problemáticas. Era um homem da ciência, um médico inovador e que revolucionou a forma como a ginecologia era encarada, que se rodeava de gente bonita, rica e bem sucedida, nobres falidos mas eruditos, burgueses interessantes e artistas das mais variadas áreas. Assim, O Homem do Casaco Vermelho proporciona uma viagem pela vida e curiosidades de algumas das personalidades mais icónicas desta época, como Oscar Wilde ou Sarah Bernhard, só para dar dois dos exemplos mais conhecidos.
"A arte sobrevive aos caprichos individuais, ao orgulho familiar, à ortodoxia da sociedade; a arte tem sempre o tempo do lado dela."
A prosa de Barnes é marcada por uma precisão quase cirúrgica, aliada a uma poética que confere ritmo e intensidade às suas reflexões. Através duma alternância habilidosa entre o passado e o presente, o autor revela gradualmente as camadas de memória que conseguimos captar sobre a vida do seu protagonista, ao mesmo tempo que faz paralelismos com situações ocorridas nos dias de hoje, como sendo frutos colhidos dessa herança criada na Belle Époque. Esta combinação de profundidade emocional e formalidade estilística marca a obra como um estudo da condição humana, sendo também significativas as histórias que escolhemos contar. No caso de Barnes, a figura de Pozzi no famoso quadro que o retrata num longo casaco vermelho serviu de mote e despertou-lhe a curiosidade sobre uma figura e uma época onde a Europa se começou a fragmentar e as diferenças entre os Ingleses e os continentais deixaram de ser apenas sobre posse de território e poder, para passarem a ser conduzidas para preconceitos que, em última instância, culminaram na decisão do Reino Unido sair da União Europeia e voltar a isolar-se na sua ilha.
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Na obra, a linha do tempo gira em torno da vida de três figuras principais, que servem de mote para explorar tudo e todos os que sabemos que o rodearam, e que refletem bem as nuances da sociedade francesa do século XIX. O já referido Samuel Pozzi, que é retratado como um homem de múltiplas facetas: culto, carismático, bonito e audacioso, navega entre os círculos sociais e intelectuais da sua época com uma facilidade impressionante, desafiando as convenções do seu tempo. Montesquiou, o poeta e esteta, é um dandy que encarna a busca pelo belo e a frivolidade; a sua aparência extravagante e as suas opiniões incisivas sobre a arte e a vida revelam um espírito crítico e acutilante que foi acumulando inimizades no caminho sem qualquer pejo. Edmond de Polignac, por sua vez, é um aristocrata que, apesar da sua posição privilegiada, lida com a decadência que assola os príncipes deste tempo, onde o dinheiro é cada vez mais escasso e o seu poder proporcionalmente reduzido, a menos que aceitem unir-se aos novos ricos, que são agora os donos do dinheiro.
"Lembra-nos que o aprazível estudo-de-uma-vida que estamos a ler, apesar de todos os pormenores, dimensão e notas de pé de página que apresente, apesar de todas as certezas factuais e hipóteses seguras que contenha, pode apenas ser uma versão pública de uma vida pública e uma versão parcial de uma vida privada."
Inegável é a elegância subtil e a profundidade que marcam a prosa de Julian Barnes. O autor tece imagens vívidas que evocam os lugares, as obras e as personagens que descreve. Esta abordagem, além de enriquecer a narrativa, convida o leitor a uma contemplação mais profunda sobre a época que explora e as consequências deste modo de vida para a sociedade europeia. Ao longo desta leitura, fui-me deliciando com esta época glamourosa e, ao mesmo tempo, marcada pelo decadentismo, numa Paris repleta de figuras internacionais famosas e talentosas. Reconheci muitos nomes, outros foram uma total descoberta, muitas curiosidades foram apresentadas sobre estas figuras e a forma como se relacionavam entre si, com amizades momentâneas, ódios de estimação, relações de inveja pura e até amores clandestinos ou nem tanto.
No fundo, é uma tentativa de biografia de figuras públicas, de quem não se sabe tudo, sobretudo no que toca à vida privada e familiar, de uma época controversa que marcou a política e a cultura da Europa, com a perfeita consciência das suas limitações factuais, pois é preciso entender que há coisas que nunca vão sair da intimidade das pessoas se elas não quiserem, se elas não partilharem de alguma forma. É uma obra que transcende o mero entretenimento literário, tornando-se num documento histórico que permite conhecer uma época, com os seus costumes próprios e uma cultura efervescente. Talvez não fosse uma leitura que à primeira vista me interessasse, mas revelou-se muito mais interessante e instigante do que estava à espera depois de tomar conhecimento sobre o que tratava e estou muito curiosa para conhecer melhor o trabalho de Julian Barnes num futuro próximo. Agora, quero muito conhecer a tua opinião! Já leste o livro? Conhecias o trabalho literário de Julian Barnes? Gostas de ensaios? Qual a personalidade que mais te cativou? Conta-me tudo nos comentários!