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terça-feira, 4 de julho de 2023

#Livros - As Meninas, de Lygia Fagundes Telles

 

#Livros - As Meninas, de Lygia Fagundes Telles

Sinopse

Eleito um dos 50 melhores romances do século XX

A longa carreira de Lygia Fagundes Telles foi marcada pela extensão da sua produção literária e pela atribuição de inúmeros prémios mas foi o prémio Camões, edição 2005, que lhe trouxe o reconhecimento e projecção no seio da literatura universal. O seu primeiro romance, intitulado As Horas Nuas, que a Editorial Presença já publicou, tem realizado uma boa carreira em Portugal, abrindo caminho para que As Meninas alcancem a aceitação dos leitores. Alguns críticos apontam As Meninas como representando a experiência mais alta de Lygia Fagundes Telles como ficcionista, situando-se na primeira linha dos autores modernos. Publicado em 1973, a romancista "surpreendeu o Brasil" com As Meninas. Três jovens universitárias partilham um pensionato de freiras na cidade de São Paulo, nos finais da década de 1960, quando a ditadura militar se impunha na sociedade brasileira. 

Lorena estuda Direito para seguir carreira; Lia desistiu do curso de Ciências Sociais para fazer a revolução; Ana Clara droga-se, frequenta um psicanalista e pretende juntar-se com um velho rico. Um universo ficcional onde Lygia Fagundes Telles cria realidades complexas, onde instaura um novo realismo e tece um painel satírico da época de 60. Privilegiado é o leitor: assiste à riqueza presente na diversidade de recursos narrativos que Lygia utiliza e deixa-se envolver pelo poder imagético que o enredo cria. Um livro complexo, inquietante, que traduz o domínio perfeito da técnica e expõe de uma forma profunda a essência da condição humana num exercício de escrita brilhante.


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Opinião 

Em 2023, tenho dedicado mais atenção às autoras brasileiras que marcaram as suas épocas do outro lado do Atlântico. Afinal, partilhamos a mesma língua e, por isso mesmo, não precisamos de tradutores para descobrir os rumos das suas histórias. A aspecto negativo, é que em Portugal se encontra poucas opções disponíveis destes grandes livros destas grandes autoras, o que é uma pena. Não consigo compreender esta falta de investimento onde quem perde é o leitor. No entanto, se todos continuarmos a procurar estes autores pouco representados no nosso país, pode ser que aconteçam novas edições e apostas em obras inéditas por aqui. 


Esta foi a minha estreia com Lygia Fagundes Telles, autora brasileira que conseguiu publicar obras perigosas em tempos de ditadura militar. Depois de ter lido As Meninas, não posso deixar de me surpreender por terem permitido a publicação de um livro que fala de drogas, de comunismo, de tortura, de sexualidade e emancipação feminina, tudo temas que a censura deveria ter barrado. Só nos resta pensar que a censura é sempre burra e deixa passar inúmeras referências óbvias, além de que a Lygia conseguiu ocultar bastante bem os temas polémicos por trás de um título inocente, de uma forma narrativa complexa, baseada no fluxo de consciência de várias personagens que se alternam sem aviso prévio, e da decisão de adiar a exploração desses temas para longe das primeiras páginas. 


Podes ler também a minha opinião sobre Laços de Família


Agora, está na hora de apontar os holofotes para as meninas que são mencionadas no título do livro e que são três, bem diferentes entre si, que se conheceram e tornaram amigas quando foram estudar e se alojaram numa comunidade de estudantes dirigida por freiras. Lia era uma jovem que abandonou os estudos por causa dos seus ideias políticos e pela sua ligação ao Partido Comunista, é a mais inteligente, a mais crítica, a mais interessante e pragmática. Lorena é a mais alienada da realidade, vinda de classe alta, sem problemas de dinheiro, ajudava as amigas com frequência, obcecada com tomar banho a toda a hora, virgem e apaixonada por um homem casado mais velho. Por fim, a Ana Clara, jovem de classe baixa, abandona os estudos e mergulha no mundo da droga, enquanto sonha subir na vida casando com um homem rico, ao mesmo tempo que namora com o traficante que lhe fornece a droga que a destrói. 


"Em verdade vos digo que chegará o dia em que a nudez dos olhos será mais excitante do que a do sexo. Pura convenção achar o sexo obsceno." 


Como já referi, todo o livro é narrado por cada uma destas meninas de forma alternada, num inacreditável fluxo de consciência que, inicialmente, torna a leitura muito difícil de entender. Mesmo para leitores experientes, acredito que esta seja uma leitura desafiante, muito por causa desta forma particular de narrar. As trocas entre elas são feitas sem aviso prévio, o que faz com que, de repente, vais dar por ti sem entender o que se passa, até compreender que já é outro narradora que tomou conta da história. Os mais difíceis de entender são os da Ana Clara, porque ela está sempre alterada pelo consumo de drogas, o que faz com que o seu fluxo de consciência seja caótico, para dizer o mínimo. Ler as suas passagens é mergulhar na cabeça e nos pensamentos de um drogado de uma forma profunda. Todos os narradores em primeira pessoa não são confiáveis, mas a Ana Clara é outro campeonato, porque nem ela própria parece saber o que se está a passar ao seu redor. 


Podes ler ainda a minha opinião sobre A Mão e a Luva 


Das três, só a Lorena continua a estudar, as outras abandonaram os seus cursos, embora por motivos diferentes. As relações amorosas são estranhas, com os homens escolhidos primarem mais pela ausência, ao mesmo tempo que optam por declinar os que estão disponíveis e perto. Como já referi, a Lorena está apaixonada por um médico mais velho que é casado e de quem espera um telefonema que nunca chega, lançando a dúvida se o interesse será retribuído. A Lia está apaixonada por um homem do Partido que está a ser perseguido pelo regime, que nunca aparece fisicamente durante a narrativa e que se prepara para o exílio para outro Continente, viagem que a Lia se prepara para fazer também para seguir o seu amor e os seus ideais. Fica a dúvida se ela ama mais o homem ou os ideais. Já a Ana Clara, além da relação com o Max, o traficante com quem se droga, parece ter um noivo rico com quem acredita que irá casar e cumprir o seu sonho de subir de classe social. Será que ele existe? Ninguém sabe, nem as amigas. 


"Bom tempo para fazer amor mas não revolução que calor muito forte em subdesenvolvido, amolece. Desfibra." 


Todas parecem caminhar sem rumo nem direcção, mas claramente que se dirigem para algum abismo, ainda que só fique claro no final a tragédia que irá ocorrer nas suas vidas. Como acontece em todo o livro, os factos são narrados mas as respostas não nos são dadas pela autora. As dúvidas sucedem-se na mente do leitor a todo o momento e cada pedaço de informação apresenta mais perguntas do que soluções do dilema. Não me vou alongar para não dar spoilers, mas este livro precisa ser lido por mais pessoas para podermos debater e discutir as impressões que cada leitor terá do que leu. Acredito que a nossa percepção seja diferente, porque temos visões distintas, experiências de vida únicas e as conclusões de cada um serão sempre pessoais e intransmissíveis, mas podem ser partilhadas e enriquecidas com isso. 


Pessoalmente, adorei a leitura e quero continuar a ler mais e mais do que a Lygia escreveu, mas para isso vocês, editoras, precisam de publicar a sua obra. E tu, leitor, tens de te juntar para que a nossa voz possa ser ouvida e existam resultados reais deste pedido. Se ainda precisas de mais motivos para ler As Meninas, aconselho-te a ver o vídeo da Tatiana Feltrin e o episódio do Podcast Livrólicos Anónimos, embora este último aconselhe a quem leu ou a quem não se importe com os spoilers. O livro físico, infelizmente, está esgotado, mas ainda podes encontrar o ebook disponível para que não adies mais esta leitura que, aposto, será marcante na tua vida. Já conheces o trabalho desta autora brasileira? O que já leste de Lygia Fagundes Telles e que recomendas que leia também? Leste As Meninas? O que achaste deste final extraordinário? Comenta e vamos discutir este livro espectacular! 


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Wook | Bertrand 

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