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terça-feira, 25 de abril de 2023

#Livros - Laços de Família, de Clarice Lispector

 

#Livros - Laços de Família, de Clarice Lispector

Sinopse

O texto de Clarice Lispector costuma apresentar ilusória facilidade. Seu vocabulário é simples, as imagens voltam-se para animais e plantas, quando não para objetos domésticos e situações da vida diária, com frequência numa voltagem de intenso lirismo. Mas que não se engane o leitor. Em poucas linhas, será posto em contacto com um mundo em que o insólito acontece e invade o quotidiano mais costumeiro, minando e corroendo a repetição monótona do universo de homens e mulheres de classe média ou mesmo o de seres marginais. Desse modo, o leitor defronta-se com a experiência de Laura com as rosas e o impacto de Ana ao ver o cego no Jardim Botânico. Pequenos detalhes do quotidiano deflagram o entrechoque de mundos e fronteiras que se tornam fluidos e erradios, como o que é dado ao leitor ao compreender acerca da relação de Ana, seu fogão e seus filhos, ou das peregrinações de uma galinha no domingo de uma família com fome, ou do assalto noturno de misteriosos mascarados num jardim de São Cristóvão. E, como se pouco a pouco se desnudasse uma estratégia, o quotidiano dos personagens de Laços de Família, cuja primeira edição data de 1960, vai-se desnudando como um ambiente falsamente estável, em que vidas aparentemente sólidas se desestabilizam de súbito, justo quando o dia a dia parecia estar sendo marcado pela ameaça de nada acontecer. 

Nesta coletânea de contos, os personagens - sejam adultos ou adolescentes - debatem-se nas cadeias de violência latente que podem emanar do círculo doméstico. Homens ou mulheres, os laços que os unem são, em sua maioria, elos familiares ao mesmo tempo de afeto e de aprisionamento.


Opinião 

Em 2023, temos mais uma estreia de uma autora icónica da Literatura Brasileira, Clarice Lispector. Já muito tinha ouvido e lido sobre esta personagem peculiar, mas nunca tinha lido nada do que escreveu. Confesso que alguns comentários que li me deixaram apreensiva e com algum receio do que iria encontrar de dificuldade na sua escrita. Mas como não sou de recusar um bom desafio, decidi que estava na hora de descobrir esta autora tão importante, começando por um livro curto, com menos de cento e cinquenta páginas, que é uma colectânea de contos, alguns dos mais famosos de Clarice e que são estudados nas escolas do Brasil. 


No entanto, em Portugal, pelo menos até ao Ensino Secundário, não existe qualquer estudo sobre esta autora brasileira nas nossas escolas. Aliás, de um modo geral existem poucas referências ou destaques aos autores do outro lado do Atlântico, o que é lamentável. Mas o que agora importa é que cheguei finalmente a esta autora e começo agora a aventura que é descobrir a sua escrita misteriosa. A dificuldade não se encontra por existir vocabulário difícil ou complexo, mas porque nas suas histórias se escondem várias camadas para além da superficial, o que nem sempre se consegue entender numa primeira leitura, nem na segunda, nem na terceira. 


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Em Laços de Família encontram-se treze contos e, tendo em conta que é de facto um livro curto, parece possível ler de um ápice, mas é exactamente o oposto. Quando primeiro peguei neste livro e depois de ter lido o prefácio de Lídia Jorge, achei que poderia perfeitamente ler dois contos de cada vez, dado que alguns nem eram muito longos. Claramente, não sabia o que me esperava e cedo percebi que não seria possível ler e compreender mais do que um conto por dia, pois no final de cada leitura é necessário reflectir, por vezes, reler, sempre pensar e sentir sobre o que se leu. Este não é um livro para levar para ler no autocarro ou enquanto se espera em alguma fila. Não é que não seja possível, mas essa leitura superficial poderá não permitir que se entenda tudo o que a autora nos quer dizer. 


"Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria." 


Com isto, não quero dizer que entendi tudo, que tenha a pretensão de ter compreendido todas as camadas de cada conto nesta primeira leitura do livro e da autora. Tenho a certeza de que quando reler este livro, vou encontrar muitos aspectos que não compreendi agora, que me escaparam e que me farão gostar ainda mais de cada história. A maioria dos contos são protagonizados por mulheres comuns, com vidas banais, resignadas com a vida que levam que é o que a sociedade espera delas. Mas essa é apenas a superfície visível, nos comentários do narrador, que passeia pelos pensamentos de todos os personagens livremente, encontramos muitos detalhes que escondem mensagens, segredos, aspectos importantes que poderão ser a chave para outras visões dentro de cada conto. 


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O mais famoso é o complexo conto Amor, que fala de uma mulher que vive para ser esposa, mãe e dona de casa, e que sente a hora perigosa durante a tarde, quando não se enquadra em nenhum desses papéis, e procura fugir desse perigo saindo de casa para comprar alguma coisa todos os dias. Esta rotina segura é perturbada quando Ana se cruza com um cego a mascar pastilha elástica numa paragem de autocarro. Esta visão faz com que deixe passar a sua paragem, e acabe no Jardim Botânico absorta nos seus pensamentos perigosos, como se tivesse mergulhado na hora perigosa e encarado os seus medos. Sem querer explorar demasiado o que aqui vais encontrar para não estragar a surpresa, tenho de destacar o meu favorito, Feliz Aniversário. Aqui temos uma família grande e bastante desavinda, que se reúne para o aniversário da matriarca que irá comemorar 89 anos. Vamos passeando pelos pensamentos dos filhos, das noras, da filha e da própria aniversariante, que revelam muito mais do que os gestos indicam. 


"E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve horror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felicidade." 


Acredito que só por estes dois exemplos, já terás uma ideia do que te espera nesta obra complexa. Não darei mais detalhes para não comprometer a surpresa que terás com a descoberta de cada universo contido nestas páginas. Ainda assim, tenho de referir outros dois contos que me marcaram e me fizeram sentir angustiada, que foram A imitação da rosa e O crime do professor de matemática. Esta é uma viagem fascinante, perturbadora, reveladora de uma mente feminina que questiona tudo o que a rodeia, mesmo que se encontre dentro dos padrões que a sua época e a sociedade onde se insere espera. Talvez não seja capaz de te mostrar tudo o que podes encontrar nestes contos da Clarice, mas espero sinceramente que lhe dês uma oportunidade de te surpreender e te enriquecer com as suas narrativas. 


Caso ainda precises de mais incentivos ou argumentos para ler Clarice, aconselho-te a ver os vídeos da Tatiana Feltrin e do Ler Antes de Morrer. Infelizmente, esta colectânea Laços de Família encontra-se esgotada em Portugal, mas vou deixar a recomendação de um outro livro, também da Relógio D'Água, que reúne Todos os Contos desta autora extraordinária. Já conheces as obras de Clarice Lispector? Conheces os contos ou também os romances? O que pensas desta escritora brasileira? Conta-me tudo nos comentários e vamos conversar sobre Clarice! 


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Wook | Bertrand

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