Sinopse
As Cabeças Trocadas é um ponto distinto - sob vários aspectos - no conjunto da obra de Thomas Mann. Nesta novela de 1940, publicada em Estocolmo, o autor alemão embrenha-se por terras indianas e reverencia a tradição védica para criar o triângulo amoroso entre Sita, "a das belas cadeiras", Shridaman, descendente de uma estirpe de brâmanes, e Nanda, vigoroso ferreiro e pastor de gado. Sita casa-se com Shridaman, mas deixa-se encantar pelos atributos físicos de Nanda - na verdade, os dois amigos íntimos têm qualidades que, para ela, se complementam idealmente.
Ao aproximar-se da filosofia oriental, Mann experimenta temperos narrativos como o erotismo, a profanação e a mitologia. Por outro lado, não abre mão de elementos caros à sua prosa: a questão da identidade e o embate entre instinto e razão. Despretensiosa na sua origem, trágica e cómica ao mesmo tempo, As Cabeças Trocadas alcança alto grau de refinamento pela voz de um narrador que gosta de pôr à prova a "força espiritual do auditório".
Opinião
Já estou em contagem decrescente para a próxima Feira do Livro de Lisboa e, no entretanto, estou a dedicar-me a ler o máximo que consigo dos que comprei em 2022, como é o caso do livro que hoje te trago. Infelizmente, é mais um título esgotado nas livrarias, mas que podes encontrar nos mercados de usados se procurares com atenção. Foi o caso deste livro que comprei na Feira numa das bancas de alfarrabistas que possuem uma oferta extraordinária de livros usados, em bom estado, de autores espectaculares e que, por vezes, não têm as suas obras disponíveis nos catálogos actualmente.
Comecei recentemente a minha aventura na leitura da obra do grande Thomas Mann, mas tenho procurado ler primeiro os livros mais pequenos, as novelas, antes de partir para os grandes e famosos romances. É uma forma de me familiarizar com a sua escrita e o seu estilo, antes de abordar os que podem ser considerados livros mais complexos e até difíceis. Assim, apesar de ter outra opção, decidi que em 2023 iria ler As Cabeças Trocadas, novela curta com cerca de cem páginas e com um tema fantástico e baseado numa lenda hindu.
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Inicialmente, ficamos a conhecer dois amigos que parecem ser inseparáveis, ainda que muito diferentes um do outro. Shridaman é um superior descendente de brâmanes, muito inteligente, culto e sábio, mas com pouca dedicação ao físico. Já o seu melhor amigo, Nanda, é um jovem atlético, robusto, com uma forma física extraordinária devido ao trabalho como ferreiro e pastor de gado. Um era uma mente brilhante, o outro um corpo forte e ágil. Apesar das diferenças, são amigos leais e que se admiram mutuamente, pois um tem o que ao outro lhe falta.
"Cada um ansiava por conhecer os sentimentos do outro. A corporização produz individuação, a individuação produz diferença, a diferença produz comparação, a comparação produz desassossego, o desassossego produz surpresa, a surpresa produz admiração, a admiração, porém, produz desejo de troca e união."
Andavam sempre juntos na sua aldeia e era frequente procurarem a companhia um do outro. Um dia, precisavam fazer uma viagem para lugares diferentes mas próximos um do outro com diferentes propósitos e partem juntos, combinando reencontrar-se em determinado ponto do percurso. É nesse reencontro que acabam por parar junto a um rio e observam uma mulher sozinha a banhar-se nessas águas, pensando que estava protegida de olhares curiosos. Era uma mulher lindíssima, com um corpo perfeito, e que não passou indiferente aos dois amigos. Essa visão perturbou as suas vidas, sobretudo Shridaman que, passado algum tempo, decidiu que essa seria a sua esposa.
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Nanda é eleito para se aproximar da família da jovem Sita e facilitar o diálogo entre ambas as famílias, até que o enlace se dá e a mulher que se banhava nua no rio e que foi espiada pelos dois amigos torna-se na esposa de Shridaman, portanto, proibida sob todos os aspectos para Nanda. Só que Sita, apesar de sentir admiração e respeito pelo seu marido, sente uma visceral atracção física pelo melhor amigo e companheiro do marido. Tenta controlar, esconder, negar essa atracção, mas até na intimidade com o marido acaba por imaginar Nanda, pensar no seu corpo perfeito em contraponto com o menos atraente Shridaman.
"O que, contudo, se confirma antes de mais é a importância decisiva e inequívoca da cabeça para a afirmação da identidade do ser humano aos olhos de toda a comunidade."
Todos os envolvidos percebem o que se passa, embora finjam não ver e evitem o assunto por todas as formas possíveis. Até que partem os três numa viagem para a aldeia natal de Sita, para visitar os pais da rapariga pela primeira vez depois do casamento. Um erro no caminho coloca-os diante de um templo, onde uma desgraça acontece. Primeiro Shridaman, enlevado pela sua devoção, corta a sua própria cabeça. Nanda, estranhando a sua demora, vai procurar pelo amigo e, deparando-se com o cenário de morte diante dos seus olhos, decide seguir-lhe as pisadas. Quando Sita vai procurar os homens que nunca mais regressam para prosseguirem a viagem, depara-se com aquele cenário dantesco e lamenta a sua sorte, acreditando que foi por sua causa que se envolveram nesse duelo macabro.
A deusa, indignada pela petulância de Sita, resolve falar com ela e esclarecer que aqueles homens decidiram dar as suas vidas em sinal de devoção para com ela, e não pela insignificante mulher. A situação já era bizarra, mas consegue ficar ainda mais, pois a deusa promete trazê-los de volta à vida, pedindo à Sita que apenas volte a colocar as cabeças caídas junto aos seus donos. Como podes imaginar, a nossa protagonista decide trocar as cabeças e colocar a cabeça do seu sábio marido com o corpo perfeito de Nanda, e a cabeça do leal Nanda junto com o corpo desleixado de Shridaman. E agora, quem é o marido de Sita? O possuidor da sua cabeça ou do seu corpo?
É esta a proposta fantástica que acompanhamos pela pena inconfundível de Thomas Mann, que nos faz viajar pela exótica Índia e pelas suas lendas. É um livro fascinante, que pode muito bem ser lido de um só fôlego, até porque a curiosidade se adensa à medida que o dilema é apresentado e explorado. É uma aventura dinâmica, colorida, com cheiro e muitas dúvidas existenciais e filosóficas. No entanto, se ainda não te convenci a partir em busca de As Cabeças Trocadas, vai assistir ao vídeo da Tatiana Feltrin. Pode ser que, enquanto te decides, alguma editora se decida a republicar este livro fantástico em Portugal, não é?
Também és fã de Thomas Mann? Já leste As Cabeças Trocadas? Que outros livros do autor já leste? Algum que recomendes como favorito? Deixa o teu comentário e vamos conversar sobre este autor extraordinário!
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