Sinopse
A transformação social. A contestação. Personagens em diálogos. As cruentas desigualdades sociais. Surgem as perguntas proibidas. Vai-se adquirindo consciência e espaço, para que tudo se levante do chão. Um livro composto por 34 capítulos. No 17.º está a tortura e a morte de Germano Santos Vidigal. Germano, o nome que significa irmão, o homem da lança. Apesar de vencido, o sacrifício da sua vida indica o caminho. «Já o encontraram. Levam-no dois guardas, para onde quer que nos voltemos não se vê outra coisa, levam-no da praça, à saída da porta do setor seis juntam-se mais dois, e agora parece mesmo de propósito, é tudo a subir, como se estivéssemos a ver uma fita sobre a vida de Cristo, lá em cima é o calvário, estes são os centuriões de bota rija e guerreiro suor, levam as lanças engatilhadas, está um calor de sufocar, alto.»
As mulheres são também chamadas à primeira linha das decisões neste belo romance de Saramago. O diálogo monossilábico entre marido e mulher da família Mau-Tempo vai-se alterando. Interessante observar uma narrativa que vai da submissão ao sentido de libertação, através de gerações.
Opinião
José Saramago, escritor português que todos os anos marca presença neste blog, é conhecido por abordar nas suas obras temas sociais e políticos, geralmente utilizando uma escrita brilhante e inovadora. Publicado em 1980, Levantado do Chão é um dos romances mais significativos do autor, famoso pela sua narrativa única e estilo literário distinto. Nesta obra, Saramago retrata a história duma família camponesa ao longo dos anos no Alentejo, apresentando uma visão crítica da sociedade e explorando as desigualdades sociais e as condições de vida precárias enfrentadas pela classe trabalhadora. Com a sua prosa rica e envolvente, o autor transporta o leitor para um mundo realista e tocante, oferecendo uma reflexão profunda sobre a luta pela sobrevivência e as esperanças e desilusões daqueles que vivem à margem da sociedade.
O livro transporta-nos para início do século XX, numa região rural do Alentejo, retratando os desafios enfrentados pelos camponeses com uma forte opressão política e social. A narrativa acompanha a vida da família Mau-Tempo ao longo de três gerações, revelando as suas lutas incessantes por justiça, igualdade e melhores condições de vida. O autor, de forma muito hábil, entrelaça a história individual de personagens cativantes com um panorama mais amplo, explorando as transformações políticas e sociais que moldaram a sociedade portuguesa na época. Utilizando esta família de camponeses humildes, mostra as condições de trabalho precárias e a falta de oportunidades que perpetuavam o ciclo da pobreza e da marginalização.
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Os principais personagens são os Mau-Tempo, uma família que representa de forma simbólica as lutas e dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores agrícolas. Destaco João Mau-Tempo, um líder idealista mas discreto, que acaba por se aliar aos comunistas pelo sonho de melhores condições para a sua comunidade, e o filho António, rapaz que herdou a vontade de saltar de lugar para lugar do seu avô, mas que acabou por regressar para perto da família e assumir as lutas do seu pai também como suas. A narrativa abrange eventos históricos muito significativos, como as greves e protestos dos trabalhadores rurais, primeiro por salários justos, depois por jornadas de trabalho de oito horas diárias; a opressão do regime ditatorial do Estado Novo e a guerra colonial, só para referir os principais. Assim, é com estes personagens e eventos que Saramago constrói uma reflexão profunda sobre a condição humana e a busca pela justiça social.
"Deus do céu, como podes tu não ver estas coisas, estes homens e mulheres que tendo inventado um deus se esqueceram de lhe dar olhos, ou fizeram de propósito, porque nenhum deus é digno do seu criador, e portanto não o deverá ver."
A estrutura narrativa utilizada por José Saramago em Levantado do Chão é extremamente interessante e inovadora, e marcou o início da sua descoberta do seu estilo próprio e singular. O autor opta por uma narrativa não linear, saltando entre diferentes épocas e personagens ao longo da história. É também esta estrutura que contribui para a construção duma narrativa polifónica, na qual várias vozes se entrelaçam e se complementam, proporcionando múltiplas perspectivas sobre os eventos retratados. Regressando ao seu estilo, tão característico, ele é conhecido por desafiar as convenções tradicionais da pontuação e da formatação gramatical, o que tendencialmente afasta alguns leitores medrosos e que não imaginam o que perdem por não ler José Saramago. O autor utiliza frases longas, onde as vírgulas se transformam em pausas fluídas que permeiam a narrativa, que a aproxima do discurso oral e afasta do tradicional discurso escrito. Esta falta de pontuação, combinada com a ausência de diálogos convencionais, misturando conversas com pensamentos, confere um ritmo único e musical à prosa de Saramago.
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É impossível ignorar o tom crítico e satírico na sua escrita, que marca uma presença muito forte neste livro, ao abordar temas sociais e políticos de extrema importância para a História recente de Portugal com uma ironia subtil, maioritariamente utilizada com o seu narrador, personagem incontornável sempre que estamos perante Saramago. Além disso, importa referir ainda a linguagem instigante e rica em metáforas de Saramago que se torna numa ferramenta poderosa para construir a conexão emocional entre o leitor e a trama, enriquecendo esta vivência literária de forma exponencial. No fundo, ler o nosso Nobel é sempre um acontecimento e obriga a pensar, a entender e a refletir a cada nova leitura. Nunca seremos os mesmos, depois de ler um livro do Saramago, esta talvez seja a única certeza que é transversal à sua obra.
"Se estas bocas tanto amargam, foi por terem falado e esperado falar ainda melhor, se viesse a liberdade, e afinal a liberdade não veio, alguém viu a liberdade, tanto dela se disse, mas a liberdade não é mulher que ande pelos caminhos, não se senta numa pedra à espera de que a convidem para jantar ou para dormir na nossa cama o resto da vida."
O romance dialoga com a realidade histórica, revelando as lutas e a resistência dum povo num momento de ditadura e repressão política. Ele critica o sistema agrícola baseado na exploração e na injustiça, evidenciando a opressão imposta aos camponeses pelas grandes propriedades latifundiárias. Além disso, Saramago também faz acirradas críticas à desigualdade de género e ao machismo arraigado na sociedade, expondo as dificuldades enfrentadas pelas mulheres naquele contexto. Tudo é retratado de forma magistral no que diz respeito à dura realidade dos camponeses do Alentejo, que enfrentam a fome, o desemprego e a tirania dos latifundiários. Com uma narrativa densa e envolvente, Saramago revela a crueldade e a miséria do período, bem como a resistência e a solidariedade que emergem pelo meio do caos social e político.
O autor retrata ainda a evolução dos personagens ao longo das diferentes gerações, revelando como as suas experiências levaram a lutas individuais e, posteriormente, colectivas, que se entrelaçam nos eventos históricos do país. Não é à toa que Levantado do Chão é considerada uma das grandes obras de Saramago, o que agora posso confirmar por experiência própria. É uma narrativa crua que consegue transmitir toda a dor e a esperança destes personagens, e de todo um povo aqui representado, duma forma tão intensa que é impossível não nos emocionarmos. Esta é uma leitura para todos os que procuram um bom livro, uma história intensa e marcante, que retrata um país e uma grande parte da população durante um longo período histórico. É leitura obrigatória para todos os que desejam expandir os seus horizontes e emocionar-se com uma história que permanece gravada na memória por muito tempo após o término da leitura.
Temos fãs de Saramago por aqui? Já leste Levantado do Chão? O que tiraste desta leitura intensa e realista? Deixa nos comentários as tuas impressões e vamos conversar sobre mais um livro extraordinário do nosso Nobel!
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